Nem as feridas traumáticas da Segunda Guerra (1939 – 1945) ofuscaram as belezas da Normandia, terra de arquitetura medieval, do castelo milenar que foi símbolo da resistência francesa, berço do impressionismo e onde se mergulha na história, no Noroeste do país.
Durante 7 dias de carro, a partir de Paris, passei por plantações floridas de maçã, vilas coroadas pela arquitetura normanda à colombages – de madeira, palha e argila – e mergulhei em histórias conhecidas mundialmente, como a de Coco Chanel, do Dia D, de Santa Terezinha e da heroína brutalmente queimada viva, Joana d’Arc .
A primeira primeira parada a partir da capital foi no berço do impressionismo, Le Havre, cidade inteira devastada pela Segunda Guerra, mas, depois , reconstruída de forma belíssima, onde há, inclusive, uma obra de Niemeyer.
Quem se programa com mais tempo na França pode aumentar o roteiro. No caminho de Paris até o primeiro destino normando, Le Havre, está Giverny, onde ficam a casa, o ateliê e os jardins do pintor impressionista Claude Monet. Uma bela parada antes de mergulhar na Normandia.
Este roteiro não é só inspiração, mas um convite para programar essa viagem. De carro, passo por Le Havre, Étretat, Hounfleur, Deauville, Liseux, Caen e Mont Saint-Michel.

Mont Saint-Michel é o terceiro cartão-postal mais visitado da França – imagem Pixabay
Já o viajante que quer estender o roteiro normando pode incluir também as cidades medievais Bayeux e, principalmente, Rouen, onde Joana d’Arc foi queimada viva.
Aos 16 anos, a heroína camponesa liderou tropas da França durante a Guerra dos Cem Anos (1337-1453) e venceu várias batalhas contra os ingleses.
A resistência do Mont Saint-Michel, castelo-fortaleza que ficou cercado pelos ingleses por 30 anos, mas nunca cedeu, foi a inspiração de Joana para defender a França. O monumento encerra este roteiro.
Após três anos lutando pelo país, ela foi traída por bispos franceses. Chafurdados em conchavos políticos com os ingleses, os líderes religiosos não aceitavam que uma mulher liderasse tropas e vencesse batalhas, ainda mais em plena era medieval. Então, ela só poderia ser uma bruxa.
Aos 19, Joana passou por um julgamento manipulado, que a condenou pelas acusações de heresia e feitiçaria.
Tragicamente, em 1941 foi queimada viva na praça principal de Rouen. O episódio, que virou literatura e filmes, ficou conhecido mundialmente e marcou a Normandia para sempre.
De Paris a Le Havre (200 km)

Le Havre foi destruída na Segunda Guerra e reconstruída por Auguste Perret
Morada e inspiração dos maiores impressionistas do mundo, Le Havre é uma cidade portuária da região da Normandia que sofreu a destruição dos horrores da Segunda Guerra Mundial.
O porto foi ocupado pelos alemães no começo da década de 1940. Com os bombardeios, quase 90% da cidade desapareceu. Desesperadas, as pessoas fugiram como puderam, mas ainda assim foram mais de 5 mil mortes de civis, entre as 80 mil vítimas.
Após os bombardeios, foi completamente reconstruída pelo arquiteto Auguste Perret, que se deparou um desafio imenso: acomodar os 80 mil desabrigados
Ancorado no pré-modernismo, ele refez Le Havre de 1945 a 1964, e elevou o status da cidade a Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco, em 2005.

No centro da foto, Le Volcan, obra imponente de Niemeyer em Le Havre
Auguste Perret e Oscar Niemeyer
Auguste Perret foi um dos pioneiros na utilização do concreto armado. Para refazer Le Havre, o arquiteto utilizou do classicismo estrutural em concreto pré-fabricado, tornando o local uma cidade-modelo.
Ainda dentro do plano de reconstrução, destaca-se na paisagem a obra de outro pai do modernismo, o mestre brasileiro Oscar Niemeyer (1907 – 1912) que projetou o centro cultural Le Voncan (O Vulcão), inaugurado em 1982.
Volcan destaca-se à beira do rio Sena e imprime na França a paisagem de Brasília, uma vez que o arquiteto bebe na mesma fonte, marcando seu estilo. A obra virou Patrimônio Mundial da UNESCO em 2005
Após a visita ao Volcan, aproveite para provar a gastronomia francesa normanda nos muitos restaurantes ao lado, para se deliciar com queijos e vinhos.

Volcan, obra de Niemeyer em Le Havre, na Normandia – foto Divulgação

Le Volcan, de Oscar Niemeyer, em Le Havre – foto Divulgação
Pertinho do Volcan, está o hotel Pasino, cassino da cidade cujos quartos oferecem vistas privilegiadas e românticas para o Sena. É o hotel mais tradicional da cidade e dá para fazer quase tudo a pé.
Não deixe de jantar no Brasserie du Pasino, o restaurante do hotel que reúne delícias nomandas, como camembert derretido, e profiteroles.
Já longe da obra de Niemeyer e do hotel, prove o melhor crème brulée no restaurante Le Grand Large. A iguaria vem pegando fogo à mesa, e você mesmo terá que apagar as chamas.
Mais obras de Perret
Um apartamento modelo criado por August Perret ajuda o turista a entender a história do local. O mobiliário é o mesmo usado durante a reconstrução da cidade, destinado para as vítimas de guerra.
A decoração parece ter parado no tempo. Até os objetos pessoais da década de 1950 estão presentes, como se alguém ainda morasse lá.
A igreja de Saint Joseph, completamente destruída em 1944, também foi reconstruída por Auguste Perret. Sua torre octogonal a 107 metros impressiona, assim como a luz dourada refletida pelos vidros coloridos, desenhados pela artista Marguerite Huré.
Arte por toda parte
Em Le Havre, alimente a alma com arte, afinal, você chegou ao berço do impressionismo. No museu MuMa, você encontra colação impressionista mais importante da França.
O pintor Claude Monet e seu professor, o mestre Eugène Boudin, viveram na cidade portuária, conhecida pelas cores únicas no céu, que vão do rosa ao laranja, inspiração para muitos pintores.
Além de Monet, Edgar Degas, Pierre-Auguste Renoir e Camille Pissarro trabalharam em Le Havre.

MuMa, museu em Le Havre, berço dos impressionistas – Andrea Miramontes
A meia hora de carro de Le Havre está a pequena Étretat, cidade praiana com as falésias mais famosas da França. As imponentes rochas de calcário branco com arco sobre o mar também serviram de inspiração para os artistas impressionistas.
Ao visitar Étretat é possível entender porque sua natureza frágil, simples e de encher os olhos serviram de inspiração para artistas como Monet e Boudin.
Além de passeios de barco, caiaque e trilha no alto do penhasco, é possível observar formações esculpidas nas rochas em um sobrevoo inesquecível.
Do alto dá um gostinho especial, percebe-se ainda mais a verticalidade das rochas gigantes e os desenhos formados nas falésias, paredões que acabam no mar e são constantemente desgastados. A região chamada Côte d`Albâtre (Costa de Alabastro) tem 140 km de falésias.

Falésias de Étretat inspiraram pintores impressionistas – foto Pixabay
3º e 4º dias – Deauville e Honfleur
Partindo de Le Havre, no caminho a Deauville, a menos de 20 km você passa pela cidade medieval de Honfleur. Reserve uma tarde para essa cidadezinha portuária, cheia de flores, arte e feiras de produtores locais.
Arrisco dizer que essa foi a tarde em que mais me aproximei do “art de vivre” francês. O conceito vai além da tradução literal, “viver bem”, trata-se de um estilo de vida que foca nos prazeres de cada momento do cotidiano.
Honfleur foi um dos poucos pontos da Normandia poupados pela destruição da Segunda Guerra. Visitar a cidade é como voltar no tempo, ao se perder pelas ruelas da idade média, com cafés, bares e lojinhas.
É também berço de Eugène Boudin, o mestre de Claude Monet, com ruas povoadas de artistas e pequenas galerias de arte.
Um pequeno carrossel antigo de parque de diversões e muitos restaurantes estão na frente do porto da cidade, chamado Vieux Bassin. As casas construídas por lá, com vista para os barcos, são as mais valorizadas.

Hounfleur, uma das poucas cidades normandas poupadas na Segunda Guerra – foto Pixabay
Cinema e Coco Chanel
A poucos minutos de carro de Honfleur, chega-se a Deauville, cidade onde Coco Chanel desafiou o espartilho e costumes da sociedade da sua época.Coco Chanel viveu e trabalhou em Deauville.
A jovem viveu na cidade e abriu sua primeira loja de moda em 1913. Na época, vendia roupas do cotidiano e esportivas, não de alta costura. Afrontosa, foi a responsável por “inventar” as calças compridas e roupas sem espartilho para mulheres.
Muitos debochavam de sua vestimenta, inclusive quando ela andava nas ruas, pois contrastava com os costumes da época. A estilista, que mudou a forma como as mulheres passaram a se vestir, teve o filme de sua vida, “Coco antes de Chanel”, gravado no destino, especialmente em uma mansão.
Construída entre 1907 e 1912, a mansão Villa Strassburger, casa do bilionário americano Ralph Beaver Strassburger, foi o cenário escolhido para o longa. Histórico, o lugar pertenceu anteriormente ao escritor francês Gustave Flaubert.

Villa Strassburger, onde foi feito o filme sobre a vida de Coco Chanel – foto Reprdução Deauville Tourism
O cinema ronda a cidade, que recebe anualmente o Deauville American Film Festival. O balneário francês com praias lindas tem a arquitetura normanda preservada também é conhecido pelo hipismo.
Pela manhã, passeie pelo mercadão, uma feira de produtores locais que acontece no centro da cidade. Baguetes, flores, morangos gigantes e queijos normandos frescos convidam às compras.
Na Normandia, há quatro queijos bem famosos. São eles: Camembert, Livarot, Pont-l’Évêque e Neufchâtel, todos de textura cremosa. Levados a sério, esses queijos especiais têm selo de Denominação de Origem Controlada (AOC) que garante origem e método de produção.
No Brasil, são caríssimos, mas por lá, muito acessíveis. Por isso, vá além da baguete e prove até a pizza quatro queijos, composta por essas delícias.

Deauville, lindíssima, mistura arquitetura inglesa e normanda – foto Pixabay

Centro de Deauville está cheio de lojas de grife; a cidade é destino de férias dos europeus – foto Pixabay
Como está de carro, nem é preciso ficar no centro da cidade. Há excelentes hotéis que se localizam nas estradas próximas, e em vilarejos, como o Les Manoirs de Tourgéville.
Muitas estrelas de Hollywood que vão a Deauville para o festival internacional de cinema, hospedam-se no Les Manoirs.
Inspirado no hipismo, o hotel boutique com chalés charmosos no meio da mata francesa tem spa e uma piscina interna aquecida, para relaxar após andar pela cidade toda.

Les Manoirs de Tourgéville – Divulgação

Quartos duplos em modelos de chalés alpinos do Les Manoirs de Tourgéville – Divulgação
Castelo destilaria
É forte, mas imperdível. Experimente calvados, o tradicional aguardente de maçã, mesmo que a sidra ( cidre em francês), bebida fermentada da fruta. Mas esqueça o espumante homônimo vendido no Brasil. A bebida da Normandia é outra.
Para conhecer a fundo, visite uma destilaria especial, Chateau du Breuil, um castelo do século 16 totalmente preservado do lado de Deauville.
No passeio, além de relaxar no jardim com 22 mil macieiras, você vai conhecer a produção da bebida e fazer degustação. E atenção, chocólatras! Levem seus euros para comprar os chocolates recheados com licor, vendidos no castelo.
5ª dia – De Deauville a Lisieux (30 km)
Já que a viagem é de carro, a rota da sidra é outro passeio imperdível. A estrada forrada de plantações floridas de maçã e produtores da bebida fica na região de Lisieux, nossa próxima parada.
Pelos caminhos e cidadelas, não deixe de parar nos pontos de pequenos produtores para experimentar maçã todas as formas, em sucos integrais, doces e tortas. Depois de passar por vendinhas e cidadelas, chegamos em Lisieux.
A cidade é marcada pela história de Santa Terezinha. Na verdade, Thérèse Martin nasceu em 1873 em Alençon, mas, aos cinco anos mudou-se para Lisieux. Aos 15 anos, ingressou no convento carmelita para se tornar freira. Adoeceu aos 24 anos com tuberculose e faleceu no Carmelo de Lisieux, em 1897.
A cidade onde Santa Terezinha cresceu atrai peregrinos do mundo todo. É possível fazer a rota da santa por museus e igrejas que contam toda a história e até visitar a casa com jardim de rosas onde ela viveu. O corpo dela encontra-se no Carmelo, um memorial e capela dedicada a ela.
Antes de morrer, Santa Terezinha prometeu uma chuva de rosas. E hoje essa expressão representa os testemunhos de graças e curas obtidas pela santa. Ela foi canonizada em 1925. Visitar Lisieux foi o momento de agradecer pela viagem e renovar pedidos, especialmente, com rosas nas mãos.

Basílica em Lisieux é dedicada à Santa Terezinha – foto Pixabay

Basílica de Lisieux merece a visita pela arquitetura lindíssima e – foto Pixabay
6º dia – De Lisieux a Caen (68 km)
Massacrada pela guerra, Caen emociona. O destino ficou marcado mundialmente como o “local do desembarque”, o importantíssimo Dia D da Segunda Guerra.
Em 6 de junho de 1944, tropas aliadas, anti-eixo (anti-Hitler) mudaram o rumo da história mundial. Chama-se dia D a data da maior invasão por oceano da história, o desembarque de 160 mil soldados na Normandia. Veja toda história neste post.

Foto histórica do desembarque de soltados na Normandia, em 6 de junho de 1944, evento que decidiu a grande guerra, o “Dia D”
Ao visitar as praias onde os soldados desembarcaram para lutar contra as forças de Hitler, me deparei com a dor da guerra. A batalha durou pouco mais de 2 meses, definiu a Segunda Guerra e foi o maior ataque anfíbio da história.
Os locais exatos onde os soldados chegaram, sob chuva de bombas nazistas, foram as praias de Omaha, Juno, Gold, Utah, Sword, nos arredores de Caen. Ao chegar a Omaha, uma praia inteira de pedrinhas e cheia de esculturas, é possível imaginar o que aqueles soldados passaram no Dia D.
No caminho e nas praias, arte e objetos militares estão expostos expostos, como tanques, uniformes e armas, que relembram os horrores da guerra. Uma verdadeira aula de história a céu aberto.
Para conhecer ainda mais sobre a história, na cidade há o museu da Segunda Guerra que reúne objetos, propagandas da época, uniformes de soltados, armas e até um bunker de guerra. Reserve duas horas para a visita ao museu.

Museu da Segunda Guerra em Caen – foto @ladobviagem

Bunkers impressionantes da Segunda Guerra também são encontrados em Longues-sur-Mer, na costa de Caen – foto Pixabay

Esculturas pelas praias do Dia D impressionam e lembram os horrores da guerra – foto Andrea Miramontes @ladobviagem
Boa parte de Caen foi completamente destruída. Mas o castelo da cidade, construído por volta de 1060, foi restaurando e pode ser visitado.
O castelo foi feito por Guilherme, o Conquistador, conhecido como Guilherme da Normandia. Assim como Le Havre, a cidade normanda renasceu. E o centro de Caen também merece visita.
7º dia – De Caen a Mont Saint Michel (125 km)

Mont Saint-Michel, fortaleza dedicada ao Arcanjo Miguel – foto Pixabay
Depois da Torre Eiffel e de Versalhes, o monumento mais visitado da França é o Mont Saint-Michel, escolhido para terminar este roteiro.
A fortificação-castelo que começou a ser construído em 708 (!) mantém a belíssima arquitetura medieval. Passou por várias guerras e nada o abalou. Impressiona e emociona. Não pule a visita completa à abadia, construída séculos depois, acompanhado de guia, para ouvir todas as histórias e lendas.
O castelo foi dedicado ao Arcanjo Miguel, que teria aparecido durante o sono várias vezes ao bispo Aubert de Avranches. E costuma-se dizer que o arcanjo ainda proteje sua fortaleza. A estrutura da fortificação somada à variação da maré, impediu a invasão de ingleses durante a Guerra dos Cem anos e tornou-se um símbolo da resistência francesa
O monumento, que aguentou ataques ingleses por 30 anos, foi a inspiração de Joana d’Arc para reunir as tropas durante a guerra. Séculos depois, durante a Revolução Francesa virou prisão, até 1863.
Passeie com calma na vilinha ao redor do castelo, com restaurantes e lojinhas em construções medievais. Vale passar um dia inteiro no monumento.

Vielas com lojinhas e restaurantes dentro do complexo medieval do Mont Saint-Michel – foto Pixabay

Roteiro de carro pela Normandia termina no símbolo da região, o Mont Saint-Michel – foto Pixabay
Com o título de Patrimônio Mundial da Unesco, o Mont Saint-Michel é um dos destinos mais clássicos da Normandia. A fortaleza serviu até de inspiração para a Disney, no castelo que aparece no desenho Enrolados.
Sete dias depois, é hora de voltar a Paris, completamente extasiada pelas histórias e cultura normandas.
Atenção, agora, são quase 360 quiômetros pela frente até a capital, muitos deles em baixa velocidade. Então, caso seja o dia de pegar o voo, nada de sair em cima da hora.
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Neste 6 de junho, relembre o Dia D da Segunda Guerra Mundial, na Normandia
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